Se o olhar sobre a realidade brasileira dependesse apenas das fontes clássicas de informação, a conversa de Pedro Bial com a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carmen Lúcia, na estreia do programa de entrevistas do apresentador na Globo, entraria para os anais da televisão como um simples bate-papo descontraído entre conhecidos. Gargalhadas, declamação de poemas, contação de causos e um rosário de frases de efeito tornaram o diálogo uma espécie de culto à figura da ministra em desprezo à oportunidade de questioná-la sobre a responsabilidade do STF na construção da pior crise social e institucional experimentada pelo país desde o início da república pós-redemocratização.
Com vídeos e menções a pensatas da juíza, Bial criou a atmosfera para a ministra exercitar a própria vaidade e enfileirar citações elogiosas sobre si, a Justiça e o conturbado momento brasileiro sem ser confrontada. A referência a partidarismo judicial, verborragia de ministros fora dos autos e morosidade seletiva nos processos – deficiências judiciárias amplamente criticadas em esferas como redes sociais e canais alternativos de mídia – seria salutar à entrevista. Mas os problemas ficaram de fora. A omissão reforçou a imagem do judiciário enquanto instituição sagrada, acima da sociedade e imune aos desvios de conduta flagrantes no executivo, no legislativo e no cidadão comum – endeusamento questionado severamente até por juristas internacionais.
Sem contrapontos, a ministra se refestelou na zona de conforto. Invocou a importância do povo para legitimar as decisões governamentais ao lembrar da saudação feita à sociedade quando empossada no cargo. “É bom quebrar o protocolo para botar o povo em primeiro lugar”, disse ela a um Bial sorridente e sem qualquer indagação sobre o endosso do STF ao impeachment de Dilma Rousseff e a consequente cassação de 54 milhões de votos desse mesmo povo. Carmen Lúcia falou de corrupção, afastou qualquer ameaça sobre a Lava Jato, mas não foi perguntada quanto ao script definido pelo senador Romero Jucá (PMDB) para “estancar a sangria” através de um grande acordo nacional “com o supremo, com tudo”. Em vez disso, a ministra recorreu a mais uma frase de efeito, extraída do hino nacional, para glorificar o STF. “Filho teu não foge à luta”, prometeu.
A convidada extra para o sofá de Bial favoreceu o clima de exaltação à ministra. A atriz e escritora Fernanda Montenegro – entrevistadora da juíza no Minha estupidez (GNT) – aproveitou a conversa para condenar a desordem econômica e política no Rio de Janeiro e o governador Sérgio Cabral, além de delatores da Lava Jato. A juíza criticou a corrupção sobretudo em momento econômico de penúria, mas, de novo, não foi instada a comentar o papel do judiciário diante do congelamento dos investimentos públicos no país por 20 anos imposto pelo governo de Michel Temer na controversa PEC do teto dos gastos.
A ausência de perguntas contundentes sobre temas espinhosos, ironicamente, contrastou com a apresentação da entrevistada feita por ele, ao estilo dos textos de cunho filosófico com os quais ficou marcado na hora de anunciar os eliminados do Big brother Brasil, por mais de uma década. “Você chama para si, a favor e contra, as expectativas da nação, torna-se alvo e referência”, declarou. Seria interessante se apontasse “os contras” durante o programa. Bial até arriscou tratar de assuntos mais belicosos, como a possibilidade de a candidatura de Lula ser inviabilizada por uma condenação judicial e a soltura do tesoureiro do PP – ambas notícias do dia, sinal de uma tentativa do programa de se manter atualizado por assuntos do momento. Mas evitou contra-argumentar diante das respostas ao longo da entrevista.
O apresentador substitui Jô Soares no talk show noturno da Globo com o Conversa com Bial. Em relação ao antecessor, deu ao cenário tons mais quentes, inverteu a posição da mesa (os convidados ficam à direita do telespectador, assim como a banda) e colocou um dicionário sobre a mesa, em uma manifestação sugestiva de humildade diante do conhecimento e de apreço pela palavra.
A opção por conduzir o bate-papo para uma zona menos conflitante, sem incômodos à interlocutora, esvaziou o impacto da estreia porque a conjuntura brasileira exigia da ministra – situada no olho do furacão, como definiu o próprio Bial – mais esclarecimentos sobre temas controversos e menos chavões filosóficos. Ficou a impressão de um diálogo construído sob medida para agradar a entrevistada e fazê-la adorável aos olhos do público. Na era das redes sociais, marcada pela prevalência da imagem sobre a essência, nem sempre cai bem cobrir a realidade com filtros.