Após conquistar o título carioca pelo Fluminense com goleada sobre o Flamengo na final, Fernando Diniz foi perguntado de onde vem a convicção tão forte de suas ideias demonstrada em toda sua carreira como treinador, mesmo quando o resultado não era o esperado. A resposta foi:
– A minha convicção vem do sofrimento que eu tive quando jogava futebol.
– Eu sei o que é ser jogador. A pior parte. Você se sentir o tempo todo exposto para ser massacrado. Pela imprensa, pela torcida, ambiente interno, que não protege. A gente acha que ser jogador é fácil. Não é. Eu não quero saber só o que o jogador produz, quero saber o que ele é.
Não apenas pelo estilo de jogo, tão debatido pela imprensa e em alta pelo grande desempenho do Flu (que venceu nas duas primeiras rodadas do Brasileirão), Diniz é um treinador que defende uma abordagem diferente da usual sobre o futebol como um todo.
Crítico de como se analisa o esporte muitas vezes de forma rasa no Brasil, o treinador não concorda quando falam que o estadual com o Flu é o grande feito de sua carreira.
Mais do que o desempenho das equipes que monta, ele gosta de valorizar sua família e as relações que criou com seus jogadores desde que começou a treinar, em 2009, no Votoraty, equipe do interior de São Paulo. Nas palavras do próprio Diniz, o mais importante no seu trabalho é cuidar dos atletas e das pessoas, para que estejam confiantes e assim produzam o melhor.
– O Fernando dá confiança ao jogador, faz com que ele acredite que possa fazer mais do que imagina – resumiu Sérgio Soares, que já jogou e treinou Diniz.
Para chegar ao momento em que é até um dos especulados para assumir a seleção brasileira, caso Carlo Ancelotti não saia do Real Madrid, Fernando Diniz passou por um caminho que começou a ser trilhado ainda na escola, ganhou força na adversidade como jogador e se complementou na faculdade de Psicologia, concluída em 2012.
O ge foi atrás de suas origens, e os relatos de quem o conhece mostram que aquilo que o técnico defende hoje já fazia parte do seu dia a dia anos atrás.
Os primeiros chutes
Fernando Diniz nasceu em Patos de Minas (MG), mas foi com a família para São Paulo ainda bem pequeno. De 1981 a 1988, entre a 1ª e 7ª série do Ensino Fundamental, estudou na Escola Estadual Stefan Zweig, na zona leste da capital paulista.
Seu histórico ainda está no local, incluindo as fichas com os boletins da época e o documento do Juventus, que pedia sua liberação das aulas de Educação Física na 7ª série por já estar jogando na equipe amadora do clube da Mooca.
Marcos Antônio Lopes, o Foguinho, era inspetor do colégio no anos 80 e acompanhou a infância de Diniz. Hoje agente de organização escolar na Stefan Zweig, ele contou que o atual treinador era um bom aluno e sempre que podia estava jogando bola.
– Ele era quieto, o negócio era na quadra. Dentro da sala de aula era bom aluno, não dava problema. Gostava muito das professoras Vera, de Geografia, e a Dulce, de Matemática. Mas o negócio dele era jogar futebol – relembrou.
Diniz concluiu seus estudos em outra escola estadual, a MMDC, na Mooca, mais próxima do Juventus. Mas ele ainda vai ao colégio em que fez boa parte do fundamental, pois é o seu local de voto (por falar em eleição, quando jogador, ele desfalcou o Palmeiras de Luxemburgo para ser mesário).
No primeiro turno das eleições de 2022, reencontrou Foguinho, que tirou foto com ele e depois o apresentou a outros funcionários. O antigo inspetor contou que já recebeu de Fernando Diniz uma camisa autografada do São Paulo, quando ele comandava o Tricolor, e agora brinca que está esperando uma do Fluminense.
– O Diniz é um cara legal, na rua é muito humilde, anda simples, bate papo com todo mundo. Na eleição, apresentei ele para todo mundo. Todos queriam tirar foto com ele – completou.
“Jogar com coragem”
Quando estava na escola, Diniz jogava também na quadra do CTC (Círculo de Trabalhadores Cristãos) da Vila Ema, mas seu começo como profissional foi no Juventus, clube que diz ser torcedor, em 1993.
Dias, Raudinei, Luizão, Anderson Lima e Sérgio Soares, ex-companheiros dele, juntaram-se na sede do Moleque Travesso para lembrar de histórias do amigo. E mesmo no início da carreira, ele já repetia uma das frases que mais fala a seus atletas: “jogar com coragem”.
– Uma das principais características que eu lembro do Fernando é que ele sempre falava da coragem para jogar, assim como é hoje. Eu joguei com ele na base e no Juventus, éramos de time pequeno. E contra time grande, o Diniz falava: “não vamos olhar o nome dos caras, a camisa deles”. Vamos jogar com coragem e disposição, porque no futebol nada é impossível. As entrevistas dele hoje me remetem ao que ouvia quando tinha 18, 19 anos – lembrou Dias.
– Eu joguei com o Fernando garoto ainda, mas ele nunca abriu mão das convicções, sempre teve muita personalidade. Já debatia com mais velhos o que achava certo e ele tem isso até hoje – acrescentou Raudinei.
O estilo inquieto também já fazia parte das características do então meia-atacante, que ao longo da carreira passou por times como Palmeiras, Corinthians, Fluminense, Flamengo, Santos, Cruzeiro e Guarani.
– Ele era um dos mais novos, mas tinha poder de liderança e falava: só temos 1h30 de esforço e podemos mudar nossas vidas. Ele era muito enfático, sabia o que queria, sempre foi dedicado. Isto ajuda a levar ao sucesso – disse Anderson Lima.
Os amigos contam que, se Diniz entendia que não foi bem num jogo, no dia seguinte chegava antes ao treino para fazer atividades à parte. Os cinco lembraram dos circuitos que montava, às vezes até sozinho, com cones para drible e melhoria de fundamentos.
– No período em que ele ficou aqui no Juventus, chamava outros jogadores para treinar mais, ir para cima deles. Era muito interessado em evoluir como atleta. Ele levou isto para a função de treinador – reforçou Luizão.
A pressão como jogador
Aqueles que conviveram com Diniz no início da carreira atestam que, se tivesse continuado jogando futsal, ele poderia ter se tornado um dos grandes nomes do esporte no Brasil.
Sua escolha, porém, foi por seguir o caminho no campo. E já nos primeiros anos, a pressão que o hoje treinador tanto debate em cima dos atletas o influenciava.
– Já de muito novo, no futsal, ele era cobrado de todos os lados. Chega no profissional, no Juventus, mesmo sem a cobrança de time grande, ninguém cuida da pessoa. É o que você produz no campo. Se você produz, tem regalia, é acariciado pela torcida. Mas jogador não é máquina – pontuou Dias.
– Às vezes eu via a pressão e era demais nele. A gente concentrava em três, eu, ele e o Raudi (Raudinei). Teve um jogo, em Ribeirão Preto, ele discutiu com um jogador do nosso time. Foi de Ribeirão a São Paulo sem falar nada. Passou uma semana sem conversar. O Raudinei não o conhecia tão bem, eu falei para deixá-lo. Só iria curar se fosse bem no próximo jogo. Ele jogou bem, o time venceu e ele então voltou a dar risada – acrescentou.
– No Guarani, ele queria se firmar de qualquer jeito e se cobrava demais. Por isso hoje ele consegue transformar isso, porque se sentia muito pressionado. Os atletas têm esta pressão, todo mundo cobra demais estar todo dia pronto e esquece o lado humano, que o Fernando trabalha mais no seu grupo – reforçou Sérgio Soares, companheiro de Diniz também no Bugre, em 1995.
Dupla jornada após a aposentadoria
Fernando Diniz fazia psicoterapia e mostrava a intenção de cursar a faculdade de Psicologia após parar de jogar. Virar treinador ainda não era o principal tema nos papos sobre futuro.
Depois de jogarem juntos, Sérgio Soares virou treinador e o levou para ser seu atleta no Santo André, em 2007. Os dois conversaram sobre o então meia virar técnico, mas Diniz só falou ao amigo que iria seguir este rumo em 2008, quando se reencontraram no Juventus. Este foi o último ano da carreira profissional do atual comandante do Flu.
Já em 2009, assumiu a primeira equipe: o Votoraty, de Votorantim (SP), cidade a cerca de 100 km de São Paulo. E ao mesmo tempo ingressou na faculdade de Psicologia na capital paulista.
A rotina era uma “loucura”, de acordo com relato feito a Sérgio Soares, mas Diniz gostou e foi se adaptando. Após perder as primeiras aulas, aproximou-se de Leonardo Simões, seu grande parceiro nos quatro anos de faculdade, dupla no trabalho de conclusão de curso (TCC) e um amigo até hoje, apesar da rotina como treinador.
Leonardo emprestou suas anotações das aulas que o treinador perdeu nas primeiras semanas e assim viraram amigos. Mesmo tendo de treinar um time fora da cidade, Fernando Diniz fazia questão de ir ao máximo de aulas possíveis. E gostava dos debates com professores e colegas na sala.
– Ele era de debater com o professor. Tem uma opinião muito forte, então quando a gente vê que ele é fechado com o “Dinizismo” dele, é porque se ele tem algo na cabeça dele, vai levar. Pode não dar certo agora, mas tem certeza que vai dar certo lá na frente. Ele era assim na faculdade – afirmou Leonardo.
– Na época, já trabalhava muito a questão de elogio. Falava: “você é fera”, batendo no ombro. E ele faz com os jogadores, também. Mas o traço bravo que a gente vê em campo, também tinha nas discussões mais acaloradas na sala de aula. Ele se impunha como a gente vê. Já vi ele exaltado algumas vezes para defender o que ele acredita (risos) – detalhou o amigo.
O TCC de Diniz
Diniz se orgulha ao ouvir relatos de como impactou a vida de jogadores que comandou e compara isto a troféus na carreira. Este foi o tema do seu TCC, escrito junto com Leonardo: “a importância da liderança do técnico em uma equipe de futebol”.
Ao longo do estudo, cita-se que um treinador precisa entender de aspectos não apenas táticos e técnicos, mas humanos, também.
É fundamental ao técnico: conhecer as pessoas e sua natureza humana; obter um relacionamento interpessoal com uma boa comunicação; liderança; motivação; conhecimento dos atletas e suas necessidades.
— Trecho do TCC “A importância da liderança de um técnico em uma equipe de futebol”
O trabalho foi avaliado pelo professor Tiago Lopes de Oliveira, com quem Diniz ainda mantém contato, inclusive trocando indicações de livros. O orientador define o ex-aluno como “generoso, cordial e educado”.
– O Fernando era bem aberto a debater, a discutir, mas ainda que em um primeiro momento pareça que ele entre no debate já fechado em uma ideia, não é assim que eu o vejo. Pode até ser que na hora esta seja a primeira aparência, mas tenho certeza que ele é muito reflexivo, ele usa o que falam dele para poder pensar onde melhorar – disse o professor.
– As pessoas muitas vezes veem o outro só de uma posição e acabam cometendo um tipo de injustiça. Ninguém é só uma coisa. Se algo se mostra muito intenso em uma característica, o oposto também é intenso – continuou.
A transformação no campo
Junto de todos os relatos de como Fernando Diniz é preocupado e amigo no dia a dia, há a imagem de um treinador muito enérgico à beira do campo. O jogo é onde o treinador extravasa e onde ele também admite que já passou do ponto, como no caso em que xingou Tchê Tchê, um jogador que conhecia havia muito tempo, quando estavam juntos no São Paulo.
Leonardo Simões argumenta que para o trabalho de Fernando Diniz dar certo, os jogadores precisam estar junto, comprar a ideia. E o esforço do técnico no dia a dia é para tentar criar um ambiente bom nos clubes que trabalha, ainda que cobre muito, também.
– Eu percebo o Fernando um cara bravo (na beira do campo), tentando o tempo todo mostrar que está conectado com o time, no entanto mesmo quando ele fez algo que as pessoas no geral não acham legal, eu só vejo coração, mesmo uma bronca. A preocupação dele é com a pessoa em primeiro lugar – declarou o professor Tiago Lopes.
Neste trabalho no Fluminense, os relatos dos jogadores são praticamente unanimemente positivos. Sérgio Soares pôde ver isto pessoalmente em janeiro, quando passou alguns dias acompanhando o dia a dia no CT do Tricolor carioca.
– O Fernando no dia a dia ele é muito paizão. E quando vai para o jogo, quando precisa dar a porrada, a absorção dos meninos é tranquila. Ele trata todos com igualdade. Estive 10 dias no Fluminense e você vê como os caras amam o Fernando. Porque ele trata todo mundo igual, do Felipe Melo ao John Kennedy, que voltou agora da Ferroviária – relatou.
– Isto que faz o grupo de futebol gostar do treinador, a conversa olho no olho. Ele fazia isto como jogador. Se tinha algo que incomodava, o Fernando não ficava quieto, batia de frente. É o que ele é hoje como treinador. Ele traz muito a personalidade de jogador como treinador – concluiu o também treinador.
O Fluminense volta a campo nesta terça-feira, às 20h, contra o Paysandu, em Belém, pela partida de volta da terceira fase da Copa do Brasil. Na ideia, vitória tricolor por 3 a 0. Pelo Brasileirão, no sábado, o Flu visita o Fortaleza, às 16h30, no estádio Castelão.
De Manchete PB
Com GE